Entre exemplares raros de jornais e fotos autografadas de celebridades, Centro de Documentação Luiz Mott busca recontar “história de resistência e deboche”.
A cabeleira de Elizabeth Taylor se destacava em meio à pilha de papéis e recortes de jornal. Era final de fevereiro deste ano, e a equipe do Centro de Documentação Professor Dr. Luiz Mott, do Grupo Dignidade, em Curitiba, acabara de abrir uma caixa abarrotada com antigos arquivos sobre o movimento LGBTQIA+. Ainda não tinham avançado muito na missão de identificar e catalogar o material quando deram de cara com a fotografia da atriz americana: cabelos já grisalhos, um meio sorriso estampado no rosto, pesados colares sobre a roupa preta. No canto direito, um recado escrito à caneta: “To GGB, with love. Liz Taylor” ( para o Grupo Gay da Bahia, com amor. Liz Taylor). “De saída, a gente achou que fosse um autógrafo falso. Uma mensagem impressa na foto”, conta o historiador Alberto Schmitz, mal segurando o riso ao lembrar da situação inusitada. Um exame mais atento — feito e refeito com a foto contra a luz e sob olhares céticos — jogou a dúvida por terra. Foto e assinatura eram legítimas. “A equipe inteira deu um salto de felicidade”.
Nos últimos meses, quem frequenta os corredores do CEDOC Luiz Mott diz presenciar surpresas e comemorações com alguma regularidade. Criado há quase 13 anos pelo grupo Dignidade, o centro é um dos mais antigos acervos de documentos sobre a temática LGBTQIA+ do país. Seus organizadores estimam que seja, também, um dos maiores. Mas não há como ter certeza: trata-se de uma profusão de livros, cds, teses acadêmica, fotografias, fitas cassete e recortes de jornal cuja dimensão exata é ainda desconhecida.
A criação do centro foi uma ideia acalentada por anos pelo ativista David Harrad, um dos fundadores e atual presidente do Grupo Dignidade. De saída, reunia materiais amealhados pela instituição ao longo de seus quase trinta anos de existência. Aos poucos se expandiu. O nome do espaço é uma homenagem ao antropólogo Luiz Mott, criador do Grupo Gay da Bahia (GGB)— a organização LGBTQIA+ há mais tempo em funcionamento no Brasil. Uma foto do homenageado, nas dimensões de uma parede inteira, recepciona quem entra na sala.
Em junho do ano passado, já em plena pandemia de covid-19, o CEDOC ganhou um reforço de peso: todo a documentação do GGB foi transferida de Salvador para Curitiba. Os materiais chegaram em 30 caixas que, juntas, somavam cerca de 1 tonelada. Foi preciso reorganizar o espaço — uma sala de 56 metros quadrados— para acomodar o material. As caixas começaram a ser abertas no dia 11 fevereiro. “E, todo dia, a gente tem uma nova surpresa”, afirma Schmitz. A foto de Liz Taylor, ele confessa, entra na lista de itens inesperados.
Esguio e de fala tranquila, Schmitz é um dos responsáveis por catalogar e preservar os tesouros que vão sendo descobertos. Além dele, há outras cinco pessoas na equipe do projeto. Três delas trabalham voluntariamente, e em dias alternados. O trabalho é meticuloso e árduo: envolve higienizar, identificar, catalogar e (ufa!) digitalizar cada peça.
A chegada do acervo do GGB deu novo fôlego à equipe, na mesma medida em que aumentou seu desafio. O material fora reunido pelo próprio Luiz Mott com uma fúria de bibliófilo, mas de maneira pouco sistemática. Como estava em Salvador, uma cidade úmida à beira-mar, grampos e clipes chegaram oxidados, e precisam ser extraídos um a um. É um esforço recompensado.
Schmitz lembra como, ao abrir a primeira caixa da nova coleção, deparou com uma edição rara do jornal Lampião da Esquina. Primeiro periódico gay de circulação nacional publicado no Brasil, nos finais dos anos 1970, o Lampião fazia do humor e do deboche uma marca característica. Reunir uma coleção completa, com todos os 37 números publicados, é um desafio. Impresso em papel jornal, é comum que os exemplares sejam encontrados em condições ruins de conservação. “O Dignidade já tinham uma coleção completa, que nós digitalizamos. Mas os exemplares são frágeis, ficam guardados em caixas especiais, para preservá-los”. Não era o caso do exemplar em questão. Quase como nova, a capa em tom de verde exibia uma charge de Fidel Castro fantasiado de Carmen Miranda: “Os órfãos de Sierra Maestra”, anunciava a manchete, antecipando o tema da edição.
O jornal teve vida breve — circulou de 1979 a 1981 — mas verve incendiária. “Nas edições, eles usavam um vocabulário escandaloso para a época: bicha, veado, sapatão”, conta Schmitz, que pesquisa a história do periódico. “Era uma forma de ser acessível e de, ao mesmo tempo, ressignificar esses termos. Fazê-los perder sua carga ofensiva”. O progressismo da publicação, que discutia assuntos tão diversos quanto o combate ao racismo e a ascensão do movimento sindical , incomodou o governo militar. Em 1979, o Lampião da Esquina foi processado com base na Lei de Imprensa. Segundo os militares, seus editores atentavam contra a moral e os bons costumes. A redação respondeu com humor: na capa da edição 12, os colaboradores do Lampião (entre eles, o autor de novelas Aguinaldo Silva) apareciam vestidos como presidiários, em protesto. A capa, emoldurada, foi pendurada numa das paredes do CEDOC.
Outra preciosidade reencontrada são os exemplares do boletim Chana com Chana. Publicado já em meados da década de 1980 pelo Grupo de Ação Lésbico-Feminista, o periódico era distribuído em estabelecimentos do centro da cidade de São Paulo. Entre eles, o Ferro’s Bar — ponto de encontro da comunidade lésbica na Avenida 9 de Julho. Quando, em agosto de 1983, o proprietário do lugar tentou impedir a circulação do jornal, as frequentadoras se organizaram num protesto que ficou conhecido como o “Stonewall brasileiro” — em referência às manifestações ocorridas em 28 de junho de 1969 em Nova York, marco do movimento LGBTQIA+.
Hoje, além do trabalho de catalogação, a equipe do CEDOC se desdobra para modernizar o site do projeto. O objetivo é facilitar o acesso de pesquisadoras e pesquisadores a esses e outros documentos. Com a emergência da pandemia de covid-19, as visitas ao centro de documentação foram interrompidas. Por ora, pedidos pontuais são atendidos por telefone, mas a ambição é de que o acervo ganhe alcance maior. “Até porque, a função final do CEDOC é difundir conhecimento, garantir que isso chegue ao maior número possível de pessoas”, conta Schmitz. O desejo esbarra na falta de braços e de recursos financeiros para acelerar o trabalho.
Em paralelo, o grupo se empenha no fortalecimento de uma espécie de rede informal de centros de documentação. Quando foi criado, em 2007, o CEDOC Luiz Mott era uma exceção em função do seu recorte temático. Hoje, outras iniciativas surgem pelo país. Caso do Arquivo Lésbico Brasileiro e do Acervo Bajubá. “Pretendemos estabelecer um intercâmbio de materiais entre as instituições”, diz Schmitz.
Enquanto isso, as origens da foto autografada de Liz Taylor permanecem um mistério. Sabe-se que, nos anos 1980, o GGB organizou uma exposição em homenagem a figuras célebres na luta contra a epidemia de HIV e Aids. “Provavelmente, a foto veio daí. Talvez um dia a gente consiga falar com o Luiz Mott e descubra como ele conseguiu o autógrafo”, diz Schmitz. Nesse meio tempo, ele se embrenha , entusiasmado, nesse universo de antigos documentos e periódicos. “Como pesquisador, é um privilégio ter acesso a essas fontes. São materiais que recontam uma história de resistência”, afirma. “Mas de resistência com alegria, e até com certo deboche”.
Foto de topo: o historiador Alberto Schmitz, um dos guardiões do CEDOC Luiz Mott. (Foto: arquivo pessoal)
Publicado originalmente em: BRASIL DE DIREITOS 24 JUN 2021